Quem sou eu?
É noite, sou acariciado pela tua luz. Estou só e no entanto, sinto em mim várias presenças. Sombra e Luz, em conflito, buscam
harmonia. Sinto os sons das suas vozes povoando meu ser, no silêncio que preenche o vazio da minha ínfima imensidão.
Meu Rebelde oculto exige ter expressão…está farto da opressão! Indigna-se perante a falsidade das gentes que ocupam lugares de poder neste mundo. Fica atordoado com as manchas de incêndios que povoam nossas florestas. O desejo de fama e o protagonismo nos meios de comunicação social parece ter atingido os incendiários! Tem vontade de explodir quando lhe enfiam o travo amargo da restrição pelas goelas abaixo! Isso, sabendo que as verdadeiras causas não estão numa conjuntura de crise internacional mas sim, na libertinagem da irresponsável de um povo que não sabe cuidar de si, próprio. Irrita-se com um sistema judicial que se arrasta e se esquece da verdadeira razão para qual nasceu, proteção dos cidadãos e sã convivência em sociedade (a verdadeira justiça não nos pertence!).
O senhor Protetor exibe seu projetor. Mostra filmes de terror sobre as consequências de ações inconsequentes do presente, no futuro. Espalha o temor em imagens carregadas de dor. Pede cautela, porque quem nada contra a corrente, perde forças, cansa-se e afoga-se nela. Paralisa com seu raio do medo. Pede que me sente no conforto daquilo que foi conquistado e use um cinto de segurança para que nada seja retirado. Sua expressão favorita é: - Cuidado com as ousadias!
Meu Ditador impõe-se sobre o poder castrador. Acha-se o dono da verdade absoluta, tem soluções para os grandes males da humanidade. Coitado, não quer ser contrariado pois qualquer democrática discussão atrapalha a eficácia de medidas que poderão evitar o caos. “Não há tempo!” – Diz ele. Tem uma nova democracia planeada, só que precisa de medidas ditatoriais para a impor. Sua frase favorita é: - “Para grandes lucros, devem corresponder grandes responsabilidades!”. Primeiro a proteção ambiental, o mundo…depois, o Homem…no final, um liberalismo vocacionado para proteção social, onde cada um possa lutar por suas conquistas. Capitalismo selvagem…não! Liberdade…sim! Mas, controlada em nome do bem comum…responsável! Não lhe basta seu país, ele quer o mundo!… Uma economia global para cuidar da nossa maravilhosa casa que é o planeta terra.
O Pessimista só vê obstáculos na pista. Declara a existência de uma batalha perdida. Perde-se nos compêndios da história mundial para mostrar à sua audiência que o Ser Humano não existe, é uma ilusão! Só existe o Ter Humano…”eu tenho logo sobrevivo!” Não há medidas nem leis capazes de evitar a corrupção, a devassidão… A ânsia de poder, levará os “chicos espertos” a contorná-las. O problema não está nas medidas, nem nas leis, mas sim em cada um de nós.
Meu Poeta chora…não ignora! Sente a impotência como a ciência perante aquilo que ainda é incurável. Constrói versos para expurgar as dores que teimam entranhar-se no corpo com a acidez da amargura. Torna-se sonhador, beija a imaginação para acordar a princesa de uma nova realidade. Torna-se um avatar, um ser de outra dimensão porque esta não é a sua, não se revê nela. Sente por toda a parte a arte, cada gesto de amor se cristaliza nela. Fazer por fazer…fazer por obrigação não é arte, amar o que se está fazendo, sim! Esconde-se no seu mundo, na sua luz e espalha seus poemas para que sejam pirilampos na noite escura, candeias que iluminam um caminho.
Meu Ausente, não está presente! Nunca está no sítio onde os outros se manifestam. É comum aparecer quando penetro no desânimo, na descrença. Adora a inação, a preguiça, parar é a sua maior diversão. Odeia a palavra sente e tem poderosas ferramentas para se manter abstraído de tudo. Adora distrações e diversões! Faz-me companhia quando desisto e isola-me.
Olha o Contemplador buscando o esplendor! É mudo o sacana, mas tem um poder que afeta minha sensibilidade. Acho que a perda de um sentido apurou os outros. Uma melodia excecional e lá vem ele percorrer-me a espinha, tocando meu coração. Uma paisagem deslumbrante e até eu fico mudo perante tanta beleza. Este diz tudo sem precisar de falar, às vezes, brinca com o poeta. Consegue calar todas as vozes por instantes. Acho que trabalha em parceria contigo querido Espírito!
De pé se mantém o senhor Fé. Apesar todas as evocações racionais do Pessimista e por mais alta que seja a montanha, ele torna-se um ciclista da esperança. Desafia o Protetor a sair do casulo onde acorrenta o “Eu sou” para dar primazia ao “Eu sobrevivo”. É um cozinheiro gourmet, alimenta meu ser com sonhos maravilhosos. Não desanima e alia-se, imensas vezes, ao Sábio que dá fundamento às suas crenças. Sua frase favorita é: “Eu acredito!”.
Como um astrolábio, lá está o Sábio. Mostrando o caminho através do que foi vivido pela experiência. Colocando a vivência e conhecimentos de outros, a favor do alcance de uma consciência mais ampla. É o mais velhinho deles todos, trás serenidade e plenitude na sua voz. Conforta o Poeta, desacelera o Rebelde, oferece ao Ditador um palanque, deixa-o esvaziar-se e abraça-o com novas ideias. Entre o Pessimista e o Fé constrói uma ponte para unir as duas margens para que nenhum se deixe levar unicamente por seu rio. Ao Protetor conta histórias de quem tudo perdeu sentado na sua confortável poltrona. Ao Contemplador dá-lhe voz, ao Ausente o aconchego de quem compreende seu autismo. À Criança dá-lhe o avô.
Minha criança é linda e dança! Faz coreografias ao sabor do que sente. Deixa-se levar pelo entusiasmo. Fala com o imaginário. Junta-se ao Rebelde quando não a deixam fazer o que quer ou ao Ditador para ser dona da razão. Brinca com o pessimista pregando-lhe partidas, com o Fé constrói castelos na areia e ri-se quando as ondas os destroem. Ao Protetor chama-lhe pai e está sempre a fazê-lo descrer. Com o avô Sábio aprende coisas como a essência, propósito, missão, significado e aprende a cultivar a paciência no jardim da esperança enquanto agradece por tudo. A Ela pede-lhe colo.
Ela é quem acende a vela. Ela é a Recetiva, meu lado feminino. É a terra fértil que espera a semente, lá de cima e a faz germinar. Que mostra a luz na escuridão. Ela é o inconsciente que sente o mistério da criação. Liga-me ao sopro de inspiração e a ti, meu bom comandante! Tu que és a parcela indivisível e única do Criador! Tu que és a centelha da Alma Divina.
Fica faltando o Inseguro e seu muro. São imensos tijolos de dúvidas colocados entre o ato de agir ou a inércia. Tem enredos fantásticos e daria um excelente argumentista. Consegue ser advogado de defesa e ao mesmo tempo, de acusação mas nunca é o juiz que decide. É demasiado racional, até racionaliza o que sente! Trabalha muito este meu Eu e está em quase todas as minhas conversas, especialmente, quando tenho que tomar decisões.
Se juntar-te como sendo um dos meus Eus, somos ao todo treze. Espero que não haja nenhum traidor connosco! A verdade é que já me traí várias vezes e fiquei aborrecido comigo mesmo. Se me traí, devo aceitar minha cruz! Por outro lado, já me surpreendi pela positiva e fiquei espantado com a ousadia de certos atos. Sou assim, inconstante!
Gosto de pensar que tu fazes parte do meu corpo etéreo e de vez em quando, fazes-me uma visita. Não sei se estás a ver… Branco e com asas, enviando-me chuveiros de energia transbordante e saborosa! Deus, Anjo da Guarda, Alma…tu estás lá, nessa comunhão Una com o Todo, nesse delicioso mistério. O que seria da vida senão houvesse mistério?
Com tantos Eus, quem sou Eu?
Somos todos Um, não é verdade?! Todos fazem parte do “Eu Sou” e cada um têm o seu papel, sua missão. Esconder seja quem for ou dar destaque somente a alguns deles cria desequilíbrio. Já tive casos em que escondi o meu rebelde por ser incómodo e certo dia, com a raiva e ressentimento entranhados no corpo, ele revelou-se da pior forma!
Há um momento para que cada um se revele e como maestro desta companhia, ainda tenho muito que aprender! Maestro, não, só o serei quando estiveres no comando! Tenho as lentes sujas de densidade e não consigo ver a pauta com clareza. Como se não bastasse, por vezes, tenho outros maestros tentando conduzir minha orquestra!
O que faria um maestro?
Pô-los a tocar a solo, aperfeiçoando seus desempenhos ou tentaria encontrar a harmonia no conjunto? Juntando o Rebelde com o Protetor, o Pessimista com o Fé e os restantes de igual forma procurando o equilíbrio. Pondo o Sábio a solo no piano da vida e os outros fazendo o acompanhamento. Seria assim?
E o Ausente onde o colocaria? Já sei, ficaria com os intervalos, ele gosta de distração e diversão e isso, também, faz falta!
Surge uma frase, dentro de mim. Sei que a colocaste, sei que já a li em algum lado: “Conhece-te e conhecerás o mundo!”. Talvez, por essa razão, me tenhas posto aqui a divagar…a falar contigo desta forma! Era isso que desejavas que eu fizesse?
Existem por aí, pessoas que manifestam com mais intensidade um dos seus Eus. Os rebeldes, sempre insatisfeitos, criticando tudo e todos. Os egocêntricos dando primazia ao seu protetor. Os ausentes refugiando-se em jogos de futebol, consolas eletrónicas entre outros. Os pessimistas, os ditadores…enfim, desequilibrados manifestamos com mais intensidade um dos nossos Eus.
Os filtros de nossas vivências pessoais fazem com que o desequilíbrio aconteça. Se nos conhecermos melhor, talvez um dia possamos encontrar a harmonia e assim, entrarmos em sintonia para tocarmos a mais bela sinfonia. Nesse dia, iremos oferecer ao Criador, a mais bela e tão esperada magistral orquestra do “Somos Todos UM na comunhão do Amor”. Até lá, nosso Maestro Maior vai continuar a ensaiar-nos quase sem darmos por isso, através da batuta chamada Vida e a pauta do Amor Incondicional.
Sei que é difícil aceitarmos que desafinamos, ficamos entristecidos quando pessoas que nos são próximas ficam sem o seu instrumento de trabalho e deixam de poder tocar na orquestra. É terrível perdermos aqueles que mais amamos e que nos servem de inspiração!
Se olharmos bem, quantas vezes tocamos sozinhos cheios de soberba? Quantas vezes, nos empenhamos em ser mais do que os outros, esquecendo que uma orquestra se constrói valorizando a harmonia e os talentos de cada um? Quantas vezes, não valorizamos nosso próprio talento? Quantas vezes, por inveja tocamos uma pauta que não foi concebida para o nosso dom? Quanta vezes, permitimos que aquilo que nos preenche de alegria acabe enferrujado por falta de uso? E os que partem não terão melhor lugar na Grande Orquestra Celestial?
Tantas perguntas não é querido Espírito?
Se fosse o Grande Maestro do Amor e da Criação o que faria para que, cada um, pudesse acender a sua centelha iluminada?
Teria de ser paciente e esperar. Cada um tem o seu tempo de aprendizagem. Amaria a todos sem nada esperar em troca. Construiria uma pauta cheia de sinais para que se apercebessem onde é que desafinam e se afastam da plenitude. Dar-lhes-ia liberdade para viverem seus erros, porque educam e aperfeiçoam. A oportunidade de se regenerarem e regressarem numa nova vida. Mesmo sem eles saberem, estaria sempre conspirando para que encontrassem o seu hino de alegria eterna, a sua alma iluminada. Como Pai indicaria o caminho, já as escolhas caberiam a cada um.
Sinto que um dia a grande orquestra humana tocará em uníssono com a grande orquestra celestial. Os portais se abrirão, jamais sentiremos a perda de um ente querido e todas as feridas serão saradas.
Tua presença em minha vida faz com que sinta que será assim! O progresso material está a conduzir-nos, ao contrário do que seria de esperar, a um estado de insatisfação cada vez maior. Temos tecnologia de ponta, autoestradas de informação, máquinas que retiram o peso do trabalho árduo e no entanto, falta algo! Sempre que faltou algo à humanidade, o homem foi à procura em busca de soluções.
Os primeiros que ousaram ir ao encontro dessas soluções foram chamados de loucos na sua época e depois de génios iluminados. Os que se lhes seguiram foram os tenazes que abdicaram de muito em prol de uma missão. Vieram os construtores, renovadores e perfecionistas. E a Humanidade usufruiu daquilo que era impensável apenas porque alguém respondeu ao chamamento que vinha do seu coração.
Vivenciamos neste momento o caos. Não é depois do caos que nasce uma nova galáxia no universo?
Olho para a minha vida e sempre que não fui capaz de me deixar levar pelo entusiasmo, o desespero bateu-me a porta e conduziu-me. Seria tão bom que a humanidade desperta-se para o entusiasmo, evitar-se-ia tanto sofrimento!
Eh pá! Dei-me conta da minha estupidez, ser conduzido pelo entusiasmo, também, pode levar-nos ao sofrimento, especialmente, se tivermos que remar contra a maré. A diferença está em que um esvazia-nos de alma e o outro preenche-a de propósito.
Fico por aqui! Acho que os meus Eus depois de devidamente dissecados se conciliaram. A aceitação de cada um deles como parte do “Eu Sou” levou-me a esta dissertação final. Se olhar bem, creio que todos eles comungam de um desejo id, embora, se manifestem de formas diferentes.
Aqui se despede… O agressivo Ditador, Protetor, Rebelde perfecionista, desiludido Pessimista, por vezes, Poeta pateta, Ausente que se fecha e outras vezes, Contemplador do amor da criação, cheio de Fé, sobre alçada dos conselhos de um Sábio, sendo uma inocente Criança, que precisa do colo d´Ela para não se sentir Inseguro. Aqui se despede aquele que não pode despedir-se si e portanto, de ti querido Espírito!
Como deves saber, este conto de vida, esta saga de busca interior “Quem sou eu?” não deverá ficar por aqui. Hoje, dissequei as personagens, amanhã, serão os enredos, os cenários…sei lá, tudo que me ajude a compreender melhor quem sou! E escrevo para que fique o registo, o lugar onde possa reencontrar-me comigo, enquanto a vida avança e a consciência vive novas experiências. Decerto, irei ler mais tarde com a luz de uma nova visão! Bom, agora, sim…despeço-me!
Adeus (é pedir a Deus um novo reencontro)!